ARTIGO: Médicos defendem que o termo ‘burnout’ é um equívoco: “estamos sofrendo danos morais”

fonte: Medscape

por Dra. Wendy Dean; Austin Charles Dean; Dr. Simon G. Talbot.

Seria o burnout o gaslighting da saúde?

Gaslighting refere-se a um tipo de manipulação psicológica que induz a pessoa a questionar a própria sanidade com o intuito de obter alguma vantagem. Seja intencional ou não, esta atitude traz repercussões importantes para a pessoa afetada que, neste caso, podem ser os médicos do nosso combalido sistema de saúde.

O termo vem do filme Gaslight (À Meia Luz, em português), de 1944, no qual o marido da protagonista constantemente aumenta e diminui as luzes dos lampiões a gás que iluminam a casa, enquanto vai escondido ao sótão buscar objetos de valor. Quando a mulher questiona a alternância da luz, o marido insiste que não houve mudança nenhuma e afirma que ela está imaginando coisas. O marido invalida as percepções da esposa, e a faz duvidar da própria sanidade.

Atualmente, um fenômeno semelhante está ocorrendo com os médicos por conta do estresse vivenciado como resultado da sinuca de bico na qual esses profissionais se encontram em função das controversas relações de trabalho inerentes ao sistema de saúde norte-americano. Pesquisas não acadêmicas, elaboradas para identificar o burnout em outras populações e adaptadas para o setor saúde, têm sido muito usadas. Elas revelaram níveis impressionantes de estresse no exercício da medicina. No entanto, com muita frequência, esses resultados não se desdobraram no aprofundamento das questões ou na busca de compreender se está correto definir o desgaste dos médicos como burnout.

O termo burnout sugere que os médicos não são suficientemente resilientes ou eficientes, ou seja, que o problema reside na pessoa, que de alguma forma está deixando a desejar. Os médicos têm considerado o exercício da profissão árduo, mas não achamos que burnout seja o termo adequado.

Não acreditamos que os médicos apresentem burnout, achamos que eles estão sendo vítimas de danos morais. O dano moral ocorre quando perpetramos, testemunhamos ou não conseguimos impedir um ato que transgrida nossas crenças morais mais profundas. No contexto da saúde, essa transgressão é causada pela necessidade de realizar a impossível tarefa de satisfazer o paciente, o hospital, a seguradora e a nós mesmos de uma só vez. O dano moral permite determinar a origem do desgaste de forma externa ao médico e como parte do modelo de negócios dos sistemas de saúde.

Os sistemas de saúde têm buscado soluções fáceis para o estresse do médico, com foco no bem-estar (ioga, retiros e aulas de autocuidado), mas isso é um equívoco. Encontrar soluções exige que abordemos o real problema: uma dificuldade inerente à estrutura do setor saúde. Dizer aos médicos que eles têm burnout sem reconhecer a causa do seu sofrimento configura gaslighting.

Anos de formação acadêmica e capacitação árduas aumentaram a resiliência do médico. Nós sabemos o que é preciso para que uma pessoa fique bem. Manter uma alimentação saudável, ter boas noites de sono, fazer exercícios e estar com a família são boas maneiras de manter o bem-estar físico e mental. No entanto, escutamos repetidas vezes que o problema é a nossa falta de resiliência, que estamos frustrados e desiludidos por não cuidarmos suficientemente bem de nós mesmos.

Mas, como uma alimentação saudável ou passar um final de semana em um retiro de ioga e meditação poderia aumentar a nossa capacidade de atuar em um sistema de saúde falido? Hoje em dia, ser um profissional de saúde implica administrar os dilemas resultantes de tentar fazer o que é certo para os pacientes, o empregador, as seguradoras e para nós mesmos, tudo ao mesmo tempo.

Muitas vezes, quando confrontados com essas escolhas, não podemos escolher colocar os pacientes em primeiro lugar. Cada vez que precisamos priorizar o empregador, o sistema hospitalar, a situação financeira do paciente ou da seguradora em vez das necessidades do paciente, somos lesados no que tange o nosso objetivo maior, que é cuidar dos pacientes em primeiro lugar. O acúmulo disso tudo configura dano moral.

Somos um cabo de guerra que está sendo puxado para todos os lados, e praticamente nenhum se aproxima de prestar o melhor atendimento ao paciente, que é ao que dedicamos as nossas vidas quando entramos na faculdade de medicina.

Não se engane, nenhuma instituição nefasta é a única responsável por esta situação. Nenhum administrador sozinho está tomando decisões com a intenção de prejudicar a própria equipe.

Em vez disso, o foco no burnout e no aumento da resiliência surgiram como resposta à insatisfação do médico. E, na ausência de uma alternativa, os pesquisadores adotaram o termo como explicação, porque os sintomas pareciam os mesmos. Além disso, já existiam programas comercializados utilizados em outras profissões, que os administradores (que também estavam sobrecarregados) poderiam usar como soluções prontas para lidar com o estresse de seus funcionários.

Infelizmente, as pesquisas confirmaram que os médicos estavam com dificuldades, mas a maioria dos inventários de burnout usados não avaliou os problemas dos sistemas de saúde que os médicos apontavam como a origem desse estresse. Depois que o diagnóstico de burnout foi feito, todos nós falhamos em repensar esta conclusão, mesmo quando os médicos continuaram a apresentar burnout apesar dos vários tipos de intervenção.

Uma das razões para isso é que houve um desgaste da parceria entre médicos, outros profissionais da saúde, administradores, seguradoras e até parlamentares para a compreensão do impacto das mudanças nas políticas e regulações sobre a prática clínica. Na maioria dos casos faltou uma contribuição significativa dos médicos antes que a liderança (em muitos níveis) tomasse decisões sobre como os cuidados seriam prestados, quais seriam os incentivos aos médicos ou como as horas de trabalho seriam alocadas.

Embora qualquer uma das decisões isoladas dos reguladores, parlamentares e administradores pareça inofensiva, o somatório dessas decisões virou um emaranhado de exigências contraditórias no consultório, o que, por sua vez, levou a uma epidemia de danos morais à medida que os médicos tentam fazer o impossível a cada atendimento.

O principal pecado dos administradores é não estarem dando atenção ao que os profissionais na linha de frente estão dizendo, e não promoverem mudanças significativas em função destes relatos. A principal dificuldade dos médicos é o fato de não termos transformado em prioridade falar sobre a nossa experiência.

Para as instituições de saúde implementarem mudanças que realmente melhorem o bem-estar do médico, elas precisam ouvir sobre a experiência de trabalho desses profissionais. Os médicos precisam participar de grupos focais, de sessões de discussão e de pesquisas dissertativas verdadeiramente confidenciais feitas pela liderança, a fim de saber sobre a real situação de trabalho. Eles precisam testemunhar a instituição onde trabalham se posicionar contra outra avaliação de desempenho, outro requisito regulatório ou outra pesquisa de satisfação. Eles precisam ver mudanças no ambiente de trabalho em função do retorno compartilhado com a chefia ou nos recursos alocados para o atendimento. Os médicos precisam perceber que os administradores estão fazendo um esforço conjunto para compreender seu sofrimento e para fazer mudanças verdadeiras a fim de mitigar os fatores causadores.

Os administradores também deveriam ser incluídos na prestação de cuidados como membros regulares da equipe nas visitas, na clínica ou na população. Presenciar os médicos tentando criar estratégias terapêuticas enquanto lidam com os dilemas seria útil. Observá-los trabalhando desta forma por 60 horas (ou mais) todas as semanas, o ano inteiro, seria revelador. Isso poderia ajudá-los a perceber que estamos vivenciando algo maior do que burnout, e que, ao perpetrar o gaslighting, dizendo que programas de bem-estar irão resolver o nosso estresse, eles só conseguirão alienar os médicos.

Os desafios na saúde são enormes e afetam a todos – pacientes, médicos e administradores. É hora de fazer um esforço conjunto para entender a perspectiva do médico e esse ambiente de estresse moral. Só então podemos fazer o que é realmente necessário: trabalhar juntos a serviço dos pacientes que confiam em nós para serem cuidados.

Quando os médicos deixam de ouvir os pacientes e de entender suas circunstâncias únicas, correm o risco de perder oportunidades diagnósticas e terapêuticas importantes. Quando a liderança organizacional não ouve atentamente as causas do sofrimento dos médicos, nenhum progresso significativo pode ser feito para aliviá-lo. Nenhum tipo de dieta saudável, descanso ou exercício resolverá o que nos aflige.

Não podemos superar um sistema de saúde disfuncional.