Residência médica tem desafios de infraestrutura e qualificação para formação de profissionais da saúde
fonte: Futuro da Saúde
O Brasil possui aproximadamente 600 mil médicos, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). Anualmente, entre 30 e 40 mil estudantes iniciam sua jornada na formação da medicina – e, no ritmo atual, estima-se que em 2035 o país passará a marca de 1 milhão de profissionais, de acordo com a Demografia Médica no Brasil, estudo da Associação Médica Brasileira (AMB) com a Faculdade de Medicina da USP. Ao concluir a graduação, parte desses novos médicos decide atuar em uma especialidade e, para isso, inicia a residência médica. Mas a transição para essa nova etapa da carreira pode vir acompanhada de alguns desafios no Brasil.
Questões relacionadas à qualidade da formação, que se relaciona com a infraestrutura para prática clínica e corpo docente, e a distribuição regional da especialização são algumas questões que permanecem sem solução. Mas esses não são os únicos desafios que os recém-formados enfrentam, aponta Adriana Cavalcanti de Aguiar, pesquisadora do Laboratório de Comunicação e Saúde e professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fiocruz.
“Os desafios da residência médica são variados, a começar pela adequação da oferta de vagas para atender as necessidades de saúde da população, mas incluem também a disponibilidade de preceptores preparados para o ensino e a avaliação dos residentes. A coordenação desses programas é outro ponto, já que demanda capacidades técnicas e interpessoais”, avalia Aguiar, que coordenou o estudo “Residências em Saúde no Brasil: uma revisão de escopo”, produzido pela Fiocruz.
A boa notícia é que existe um mercado carente por esses profissionais no Brasil: o país possui uma densidade de 2,8 médicos a cada mil habitantes, índice ainda abaixo dos 3,5 recomendados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
“O indicador de densidade médica do Brasil está abaixo da média dos países da OCDE. Então, há, sim, oportunidade de aumentar o número de médicos formados”, reforça Renato Melli Carrera, coordenador do Programa de Residência Médica do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEP). “Mas a questão não é aumentar por aumentar. Temos que ser capazes de oferecer qualidade para que esses profissionais sejam qualificados e possam atender a todos.”
Qualidade da residência médica
A residência médica é uma modalidade de pós-graduação considerada o padrão-ouro para especialização de médicos. Em 2021, de acordo com o Ministério da Educação (MEC), 41.853 médicos faziam alguma residência médica no Brasil em um dos programas mantidos por cerca de 800 instituições credenciadas pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), órgão responsável pela regulação, credenciamento e supervisão dos programas públicos e privados de residência.
Por se caracterizar como um tipo de treinamento baseado em serviço, a execução de tarefas assistenciais, sob supervisão de um corpo docente, faz parte da construção do legado do especialista. Portanto, um dos fatores ligados à qualidade da formação depende justamente do campo de estágio. “Há um aumento da procura por programas de residência, mas aumentar a oferta não é suficiente. Ela precisa ocorrer onde seja possível propiciar campo de estágio adequado para esses indivíduos, com boa plataforma de pacientes”, aponta Carrera.
Outro ponto que influencia na formação é a capacitação do corpo docente, que têm a responsabilidade de acompanhar e orientar os residentes. Pela importância dessa orientação, os preceptores precisam ser qualificados para utilizar todo o leque de ferramentas à disposição na hora de treinar esses profissionais. Para Aguiar, o desenvolvimento de preceptores vem sendo pautado e as oportunidades formativas aumentaram nos últimos anos, mas é preciso avançar ainda mais.
“Infelizmente, é comum vermos os esforços de formação de bons preceptores se deparando com a precarização do trabalho em saúde, gerando rotatividade, o que não é produtivo”, acredita. Por outro lado, ela lembra que há programas focados em preparar os residentes para, futuramente, atuarem no exercício da preceptoria, “o que pode implicar em significativo salto de qualidade”.
Criação de uma política nacional
Uma das ações que está em andamento para endereçar parte dos desafios é a criação de uma Política Nacional de Residências em Saúde. As diretrizes do documento estão abertas para consulta pública desde 27 de setembro e seguirão até 16 de outubro. Por enquanto, cerca de 450 contribuições já foram feitas.
Aguiar lembra que, ainda em 2023, o Ministério da Saúde realizou seminários em parceria com o Ministério da Educação que resultaram em uma minuta com os termos iniciais da política. “A participação foi ampla e os trabalhos de grupos estratégicos trataram de temas muito relevantes para a qualidade da oferta dos programas”, lembra a pesquisadora.
A nova política visa estabelecer as residências em saúde como modelo de referência para a formação de especialistas no Brasil, alinhando a regulação das residências às necessidades e prioridades do SUS. Além de promover uma distribuição territorial mais equitativa dos programas e das vagas, a política propõe a expansão de programas em regiões e especialidades estratégicas, garantindo que a formação dos especialistas esteja alinhada com as demandas reais do sistema de saúde.
A distribuição é justamente um dos desafios levantados pelos especialistas. Segundo a Demografia Médica no Brasil, a região Sudeste concentrava 56,1% dos médicos residentes em 2021, seguida pelas regiões Nordeste (16,7%) e Sul (16,1%). Centro-Oeste (7,5%) e Norte (3,6%) têm as menores proporções de residentes.
Tendências da residência médica
Além da possibilidade de uma nova política, Aguiar aponta que o aumento do diálogo ea necessidade de uma visão multiprofissional são tendências que também influenciam os programas atuais. “Minha expectativa é de que as residências médicas e multiprofissional possam confluir mais, na linha da chamada educação interprofissional, com benefícios para a qualidade do cuidado”, afirma ela, que indica também ser possível trabalhar a formação acadêmico-científica dos residentes, investindo na elaboração de trabalhos de conclusão de curso com a devida orientação.
Já Carrera lembra que a evolução da medicina é rápida e, por isso, as matrizes de competência dos programas de residência médica também podem ser alteradas de acordo com a necessidade que a câmara técnica de cada especialidade julgar adequado e necessário.
Ele cita como exemplo a introdução de novos nichos do conhecimento em turmas de residentes do Einstein. “Incorporamos a cirurgia robótica em alguns programas, como nos de cirurgia geral e urologia, que usam muito esse dispositivo. Isso está apartado da matriz de competência, mas julgamos ser relevante inserir na complementação desses especialistas. Essa oportunidade de movimentar as capacidades a serem desenvolvidas é muito importante em quem trabalha com a formação de especialistas.”
O coordenador acredita ainda que não existe produto de qualificação melhor para a formação de especialistas do que o programa de residência médica. Por isso, ele defende que o melhor cenário é seguir oferecendo um número apropriado de vagas qualificadas. “No fim das contas, a pergunta que devemos fazer é: quem é o médico que eu gostaria que me atendesse em 5, 10 anos? E trabalhar para que ele esteja apto para isso”, conclui.