Dia das Crianças: Médicas vivem desde cedo a inclusão social através de suas filhas com condições especiais

Enxergar toda e qualquer criança antes da sua condição ou deficiência deve ser algo comum e natural, certo?

A SOBED-RJ conversou com duas médicas, mãe de crianças diagnosticadas com condições especiais, e traz na reportagem, a seguir, uma lição de inclusão social no Dia das Crianças.

Beatriz e Cecília gostam de fazer passeios, de teatrinhos e de ouvir historinhas. E, assim como todas as crianças, amam brincar e vibram quando os pais chegam em casa depois do trabalho e podem dar aquele beijo e abraço apertado. A diferença é que a Cecília (3 anos), filha da pediatra Dra. Deborah Chalfun, nasceu com paralisia cerebral fruto de asfixia perinatal, e a Beatriz (4 anos), filha da gastro e endoscopista Dra. Roberta Rigueira, foi diagnosticada com malformação cerebral, após 3 meses de vida, em consequência de uma síndrome genética.

Mas na vida dessas crianças, nunca faltou admiração e respeito por parte dos pais e familiares, nem paciência e carinho. Em ambas as famílias, a inclusão social começou em casa e desde cedo.

A Dra. Cecília Chalfun e o marido, o historiador Bruno Varanda, são casados há sete anos. E do amor deles veio a Cecília, a princesa guerreira da vida deles, que sofreu uma asfixia no nascimento. Eles contam que faltou oxigênio para ela na hora do parto e, por conta disso, ela acabou sendo diagnosticada com paralisia cerebral. Ou seja, a falta de oxigênio foi a causa da lesão cerebral.

“Minha filha lutou pela vida e desde cedo tem uma rotina de atleta. Faz duas a três terapias por dia: fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, hidroterapia e musicoterapia. Ao nascer, ficou dois meses internada pois não conseguia sugar adequadamente, sendo necessária a realização da gastrostomia para a nossa alta do hospital. Daí em diante, ela nunca mais internou e se alimenta por uma sondinha no estômago. Nós passamos por um processo de adaptação. Meu marido é funcionário público e conseguiu ficar três anos afastado, o que foi fundamental para que eu não precisasse parar de trabalhar. Eu reduzi muito a minha carga horária, sou cardiopediatra, e fiquei só com um emprego, nos primeiros anos, para nos dedicarmos à nossa filha. Vimos o quanto era importante a estimulação o quanto antes e que fosse com a nossa presença. Além disso, como eu tenho família grande, começamos a fazer um trabalho de inclusão, mostrando desde cedo para os meus sobrinhos, que tem idade próxima da Cecilia, como era a rotina dela aqui em casa. A gente percebe que quando a inclusão é feita desde cedo as crianças lidam muito bem com a diversidade. Quando pergunto a eles o que a Cecilia tem de diferente nenhum deles fala deficiência, porque para eles é algo natural”, explica Dra. Deborah.

Já a Dra. Roberta Rigueira e o marido, o médico anestesista Rafael Bria, são casados há 12 anos. Estrearam na maternidade com o Bernardo, hoje com 7 anos, e depois ganharam a Beatriz, que há 4 anos os presenteou com uma outra forma de amor e dedicação: a maternidade atípica, como eles denominam.

“Nós quatro, em casa, somos muito unidos. Então, desde o diagnóstico da Beatriz, aos 3 meses, o nosso filho sempre soube de tudo, conversamos muito! Ele é super ciente e participativo. E falamos sempre de um jeitinho que ele entenda. Claro que o que a gente fala, hoje, é diferente do que a gente falava quando ele tinha 3 ou 4 anos. Mas o Bernardo sempre soube que a irmã era diferente e fala com naturalidade para os amigos o nome da malformação dela: Síndrome de Miller-Dieker. Inclusive, já fizemos palestra na escola dele, levando a Bia lá para as crianças entenderem mais. O caso dela é consequência dessa síndrome genética. O cérebro da nossa filha é todo pequenininho e liso. Eu suspeitava que havia algo de diferente com a Bia e na consulta de 3 meses a pediatra constatou um atraso global do desenvolvimento. Dez dias depois, tivemos o diagnóstico. Fomos ao neurologista, que também observou o mesmo, e a tomografia comprovou a lisencefalia”, conta Dra. Roberta.

As duas famílias passaram por adaptações desde o diagnóstico e por momentos difíceis. Mas o olhar cuidadoso e a presença física dos pais e da rede de apoio (avós e babás) fizeram a diferença na qualidade de vida que elas levam. São meninas felizes, muito bem estimuladas, e o mais importante, são incluídas na sociedade pois tem pais que souberam valorizar esse movimento.

“A gente cuida, realmente ama e busca dar o melhor, que para gente é estar sempre com ela na maior parte do tempo, inclusive, levando às terapias na clínica especializada. Lá fizemos amizade com outras famílias e já chamamos para festinhas. Temos um grupo no WhatsApp da síndrome dela, que é do Brasil todo, onde trocamos muita informação, e seguimos redes sociais, como a da Dra. Deborah (@deborah_chalfun), que nos trazem informações e até nos atualizam com relação a objetos e tecnologias, como cadeiras de rodas modernas para irmos à praia, por exemplo. Falamos sempre para nossa filha que o que pudermos fazer para ela ter uma vida feliz e agradável iremos fazer. Ela merece brincar do jeitinho dela, por isso, somos a favor de festas inclusivas. Quanto mais as pessoas souberem e entenderem do que precisamos é melhor. O tempo todo estamos com ela sentando na cadeira, “posturando”, brincando, fazendo teatrinho, lendo livrinho. Ela interage comigo, com o meu marido e com o meu filho e se “escangalha” toda. Ela bota a língua para fora, que é o jeito dela de dar beijo. A gente aprende com as carinhas dela e sabe se está gostando ou não daquele momento de brincadeira. A gente faz tudo para ela não ter complicações de encurtamento e dá amor, carinho e respeito. E o fato de sermos médicos ajuda muito também. Temos balão de oxigênio em casa, temos vácuo para aspirar ela. Se escuto e acho que é pneumonia, começo antibiótico. Então, a medicina nos ajuda muito na parte técnica do tratamento para não levá-la ao hospital. Mas do ponto de vista da inclusão, a medicina não nos preparou para isso. O que vem nos ensinando muito é estar vivendo com ela as mais diversas situações”, ressalta Dra. Roberta.

Dra. Deborah Chalfun também vêm aprendendo muito com sua filha, tanto que se tornou uma ativista da inclusão, como ela mesmo se define em seu perfil do Instagram. Passou a ser voluntária no “Instituto Nossa Casa”, onde foi escolhida como representante dos familiares de pessoas com paralisia cerebral.

Participou, inclusive, da live realizada no Dia Mundial da Paralisia Cerebral, em 6 de outubro, na qual a Cecilia foi garota propaganda. E ainda marca presença em outras lives da ONG, contribuindo com o seu conhecimento sobre alimentação e nutrição. Médica pediatra e mãe da Cecília, ela acredita que é preciso espalhar conhecimento através do amor:

“A paralisia cerebral não determina o tipo de vida e a evolução da criança. O que realmente determina a forma como aquela criança vai se desenvolver, quais habilidades vai possuir ou de que maneira sua vida seguirá, são os estímulos recebidos, o amor dedicado e a inclusão em todos os campos possíveis. Pessoas com deficiência devem estar em todos os cantos, sim! Acredito que nos dias de hoje, isso simplesmente não acontece por falta de acessibilidade, mas exclui-os do convívio social. Infelizmente, o nosso país tem um longo caminho a percorrer. Espero poder contribuir um pouquinho para melhorar esse cenário. Não posso mudar o mundo, mas posso tentar mudar o mundo ao meu redor. Por isso, seguimos com muita fé, esperança e amor incondicional.”

Dra. Roberta também é engajada. Sua ferramenta de solidariedade é um grupo de WhatsApp, no qual atende virtualmente a cerca de 40 famílias com crianças com a mesma síndrome da sua filha Beatriz. Ela contribui, principalmente, com informações a respeito da cirurgia de gastrostomia endoscópica, procedimento que ela mesmo realiza como gastro e endoscopista, e que precisou submeter a Beatriz há 2 meses, já que ela parou totalmente de ganhar peso e passou a apresentar descontrole nas crises de epilepsia.

“A epilepsia de difícil controle faz parte dessa síndrome. É um suplício: a gente tira remédio, coloca, aumenta dose, diminui. Então, a gente fica nessa batalha do controle de crise. Eu, sendo gastro e endoscopista, sempre soube que ela ia fazer gastrostomia. Sempre falei para o meu marido e para os avós que chegaria esse momento. Mas até enquanto ela estava ganhando peso e não fazia pneumonia nós dávamos a dieta dela pela boca. Mas, ela parou totalmente de ganhar peso por 1 ano e realmente as crises passaram a ocorrer de forma descontrolada. Sendo assim, decidimos partir para a gastrostomia para termos uma via segura para dar os remédios e a dieta. Foi uma longa conversa com o nosso filho, que tinha muitas inseguranças com relação ao procedimento e não queria ver a irmã com qualquer tipo de dor. Mas posso dizer que o custo benefício vale muito a pena. Ela já engordou mais de 1kg e as crises estão controladas, pois os remédios são dados na hora e dose certas. No grupo do WhatsApp eu explico sobre curativo, dieta, remédios. As famílias me enviam vídeos da gastrostomia e procuro ajudar tirando dúvidas e compartilhando a nossa experiência. Também me sensibilizei com a “One by One”, ONG de uma mãe com filho especial, e nos primeiros anos da Bia revertemos os presentes da festa de aniversário dela para as crianças especiais de baixa renda da instituição. E pretendo colaborar lá, em breve, de alguma forma”, revela Dra. Roberta.

Falar de gastrostomia também é um dos assuntos preferidos da Dra. Deborah, que sempre publica vídeos e fotos desses momentos em seu Instagram. Ela, inclusive, usou esse tema em uma festa inclusiva da Cecília:

“Na festinha de 2 anos, fiz um totem, do tamanho dela, e colocamos o boton da gastrostomia e a bexiga atrás. As crianças puderam alimentar esse totem pois colocamos a sonda e viram exatamente como a Cecília se alimenta. As crianças viram para onde ia essa alimentação, entenderam que a bexiga enchia igual ao estômago deles, e expliquei tudo isso de uma forma lúdica. As crianças acharam o máximo! Também chamei terapeutas para fazer a animação, pensando em incluir e fazer uma integração melhor. Todos puderam brincar juntos no boliche adaptado, entre outras brincadeiras, além da historinha da sereia Cecilia, que dei junto com uma boneca, que também tinha gastrostomia. Era uma sereia diferente, que nadava mais devagar, se alimentava por um botãozinho, e cantava diferente, e nem todo mundo entendia essa forma de cantar. Na história, a sereia conseguia tirar a cauda para poder passear fora da água, mas para isso precisava da ajuda de uma grande amiga: a cadeira de rodas. Como as minhas sobrinhas adoram princesas, então, falei que a Cecilia era a princesa sereia, como a Ariel. O olhar delas é de admiração. Elas adoram essa historinha, a boneca, e adoram alimentar a Cecilia. O sentimento que a gente está criando é o de respeito e não de pena”, ressalta Dra. Deborah.

 

Sobre festas inclusivas, Dra. Roberta questiona porque a sociedade não adota essa prática com mais frequência:

“Vocês estão realmente incluindo essas famílias? Se preocupam em saber se tem rampa de acesso, se tem alguma comida pastosa que a criança consiga comer? Ou se tem alguma brincadeira que a cadeira de rodas possa acessar? Chamem essas crianças para um passeio! Eu vejo que as nossas gerações não foram criadas dessa forma, e por isso, acho esse trabalho de inclusão tão importante. As pessoas podem passar a oferecer de levar a minha filha ao zoológico ou ao parquinho também, e não só oferecer de levar o meu filho. Isso ainda é muito difícil para mim. Por mais que as pessoas sejam muito próximas e carinhosas, ainda faltam convites desse tipo. E não podemos forçar esse tipo de coisa em se tratando de uma criança de cadeiras de rodas e gastrostomia. Mas a gente vai educando, vai indo junto para pessoa ver que não é um bicho de sete cabeças.”

Dra. Deborah concorda em olhar a diversidade com naturalidade e acredita que independente das dificuldades, tem muita beleza e alegria nessa caminhada:

“Eu acredito, de verdade, que a inclusão só é feita quando todo mundo está junto. A gente segrega e isso não é inclusão. Não só a minha filha vai se beneficiar em estar com as crianças com desenvolvimento típico, como as crianças que não tem deficiência vão se beneficiar em estar com a minha filha. Temos tantos conceitos formados ao ver um diagnóstico que muitas vezes esquecemos de ver a pessoa que está por trás daquele laudo. Não esqueçam de olhar para criança antes de olhar para sua deficiência. Sei que não é fácil brincar com uma criança que interage pouco, mas acreditem, é transformador! Muitas vezes, vamos precisar de adaptação. Porém, quem precisa de adaptação é o ambiente, não a criança! Toda criança tem o seu próprio tempo e quem lida com criança com deficiência tem que saber esperar. No nosso caso, quando entendemos isso e fizemos as adaptações nos brinquedos e nas brincadeiras, a Cecilia começou a interagir mais e conseguimos brincar de tudo! Acredito que todos podem se conectar e brincar através do afeto e da empatia”.

Neste Dia das Crianças, a SOBED-RJ parabeniza todas as filhas e filhos dos associados e deixa o caminho aberto para uma nova caminhada de inclusão.

“Eu sei que não vou conseguir fazer a minha filha andar e falar, mas iremos fazer de tudo para ela sempre sentir que é amada e respeitada e ter uma vida feliz e agradável”, finaliza a mãe da Beatriz, de 4 anos.

“Vamos sempre caminhar juntas; no colo, no andador, na cadeira de rodas ou aonde for”, encerra a mãe da Cecília, de 3 anos.